Ana Catarina |
Um texto de Ana Catarina Vieira de Castro, Bióloga e Postdoc no grupo de Ciências de Animais de Laboratório do IBMC. A Catarina estudou o comportamento de pombos para o seu doutoramento (trabalho que lhe valeu um prémio) e é treinadora de cães certificada.
Os métodos utilizados no treino e modificação comportamental de cães estão longe de ser lineares e consensuais entre treinadores e veterinários comportamentalistas. Há duas abordagens ou “escolas” principais com diferenças vincadas nas metodologias utilizadas. De um lado temos as chamadas metodologias tradicionais ou aversivas, que assentam sobretudo na utilização de força física, castigo e intimidação. Do outro lado temos as chamadas metodologias positivas ou force-free, que assentam sobretudo no uso do reforço positivo.
Recentemente várias associações veterinárias, associações de bem-estar e proteção animal e algumas associações de treinadores têm-se posicionado contra o uso das metodologias aversivas (ver, por exemplo, aqui e aqui). Um dos principais argumentos utilizados prende-se com o impacto negativo que estes métodos podem ter no bem-estar dos cães. Algum suporte para estas preocupações pode ser encontrado em estudos laboratoriais realizados na área da psicologia da aprendizagem ao longo do século XX (utilizando diferentes animais como pombos, ratos ou cães), que demonstraram alguns dos potenciais efeitos colaterais da punição, como estados emocionais generalizados de medo e ansiedade, supressão generalizada de comportamentos e agressividade (ver, por exemplo, aqui e aqui).
No entanto, em alguns casos são feitas afirmações que carecem de comprovação científica ou que algumas vezes vão mesmo contra o conhecimento científico actual. Por exemplo, a Pet Professional Guild, uma associação norte americana de treinadores force-free, afirma na sua declaração de posição sobre treino de cães que existem evidências científicas extensas e irrefutáveis de que o treino aversivo de cães 1) provoca repercussões comportamentais negativas e 2) é menos eficaz do que o treino positivo.
Embora possamos encontrar nos estudos da psicologia acima referidos algum suporte para a afirmação relativa aos potenciais efeitos deletérios dos métodos aversivos, o caso é muito diferente para a afirmação sobre a eficácia dos mesmos. Não parece haver actualmente literatura em que nos possamos basear para aceitar afirmações sobre a maior eficácia do reforço positivo em relação à punição. E basta recorrermos a um manual de introdução à psicologia da aprendizagem para encontrarmos referências relativas à extrema eficácia de determinados procedimentos aversivos.
O caso torna-se ainda mais complicado quando falamos de evidências no caso específico do treino de cães. Ao contrário daquilo que é afirmado na declaração, os estudos científicos realizados sobre métodos de treino de cães são escassos e não é possível retirar deles as evidências (irrefutáveis) acima referidas.
No entanto, o mês passado foi publicado na revista Plos One um estudo que, na minha opinião, trouxe algumas indicações e algum avanço nesta matéria.
O estudo, desenvolvido por um grupo de investigadores da Universidade de Lincoln (Reino Unido), comparou a eficácia e as implicações no bem-estar de treino com coleiras de choque (Grupo A), treino com métodos aversivos mas sem coleiras de choque (Grupo B) e treino com métodos positivos (Grupo C).
Os três grupos de cães foram treinados durante 5 dias e as sessões de treino foram filmadas para posterior análise comportamental. Os resultados revelaram uma tendência geral para os animais do Grupo A mostrarem uma frequência maior de comportamentos indicadores de stress e/ou desconforto do que os animais do Grupo B e estes, por sua vez, maior do que os do Grupo C.
Os autores concluem que o uso de coleiras de choque resulta numa situação de stress para os cães, mesmo quando realizada de acordo com as melhores práticas (os treinadores que participaram no estudo eram todos treinadores experientes e foram nomeados pela ECMA - Electronic Collar Manufacturers Association e pela APDT – Association of Pet Dog Trainers), e que portanto apresenta um risco para o bem-estar dos cães. Apesar de este estudo se focar sobretudo no uso das coleiras de choque, também é possível concluir a partir dos dados obtidos que mesmo o treino com métodos aversivos sem coleiras de choque envolveu stress para os animais, embora menos quando comparado com o treino com coleiras de choque.
Os autores também concluem que a eficácia dos três tipos de treino é equivalente. Questionários feitos aos donos após o treino revelaram que os mesmos estavam satisfeitos com os resultados do treino e que esta percepção foi equivalente para os três grupos. A maior limitação do estudo parece residir neste ponto. Não é claro porque os investigadores optaram por usar a percepção dos donos como medida de eficácia, uma vez que esta não é uma medida objectiva. O estudo teria ganho mais força se a eficácia tivesse sido avaliada pelos próprios experimentadores, por exemplo, através da análise de vídeos.
Apesar desta limitação, este estudo foi, na minha opinião, um primeiro passo de qualidade no estudo dos efeitos dos métodos de treino no bem-estar dos cães. No entanto, mais estudos experimentais, sistemáticos e comparativos são necessários até podermos falar de evidências fortes e/ou irrefutáveis. Estudos deste género poderão ser conduzidos em maior escala, envolvendo mais treinadores. São também necessários estudos que procurem avaliar os efeitos a longo prazo da eficácia e do impacto no bem-estar dos métodos de treino.
Gostava de terminar este texto com uma reflexão. Independentemente das respostas que a ciência possa vir a dar, a discussão desta matéria terá sempre, na minha opinião, uma componente ética. Até que ponto é eticamente justificável optar por ensinar um animal através de metodologias que envolvem desconforto, dor e/ou medo, mesmo que os impactos no bem-estar se revelem negligenciáveis? Caberá aqui uma análise dano-benefício? Mesmo que as metodologias aversivas permitam atingir resultados mais rapidamente, até que ponto é justificável optar por elas? E mesmo que as metodologias aversivas se mostrem mais eficazes em determinadas situações, será isto suficiente para apoiar o seu uso generalizado? Os métodos aversivos, quando utilizados na terapia comportamental humana (e aqui o seu uso é, naturalmente, também extremamente questionado), são-no em situações onde outros métodos falharam. Não há nenhum terapeuta humano que defenda o uso indiscriminado de estímulos aversivos como forma de controlo ou modificação comportamental. No entanto, é isso que acontece com os cães. Haverá alguma teoria ética em que esta prática não seja questionável? Até para um contractualista ela é, no mínimo, merecedora de consideração.