Kelly Gouveia licenciou-se em medicina veterinária pelo ICBAS em 2007 e tem feito desde 2008 um percurso interessante e diversificado ao nível da investigação em bem-estar animal. Concluiu recentemente o seu projecto de doutoramento pela Universidade de Liverpool, sob a orientação de Jane Hurst e Paula Stockley no NC3Rs, e que se focou no refinamento do manuseamento de murganhos.
Nuno Franco - Olá Kelly, podes começar por fazer um breve resumo do teu projecto de doutoramento e das suas principais conclusões e implicações?
No meu projecto de doutoramento estudei formas práticas de reduzir o stress associado ao manuseamento, em ratinhos de laboratório. O stress associado ao manuseamento constitui um problema de bem-estar e pode induzir variação nos resultados experimentais. Animais de laboratório necessitam constantemente de ser manuseados, quer seja para efeitos de limpeza, simples inspecções diárias ou para fins experimentais. Dado que o ratinho é a espécie laboratorial mais usada neste momento, isto pode ter implicações para muitos milhões de animais utilizados em ciência mundialmente. Embora o método mais comum de manusear ratinhos seja levantá-los pela cauda, uma publicação relativamente recente (Hurst & West, 2010) demonstrou que este método induz aversão ao manuseamento e ansiedade, contrariamente a dois métodos alternativos: guiar o animal para dentro de um túnel presente na jaula ou usar a técnica da mão aberta em que o animal e apanhado com a mão aberta e segurado na palma da mão (hand cupping).
O meu projecto analisou a eficácia destes métodos relativamente ao método da cauda, a fiabilidade de os implementar na prática e modos de os integrar na prática laboratorial. Outra parte do meu projecto consistiu em testar os efeitos do método de manuseamento na fiabilidade de resultados experimentais, principalmente em experiências que aplicam testes comportamentais/cognitivos. O método do túnel contribui para uma redução significativa do stress associado ao manuseamento e pode ser implementado de forma prática, ou seja, não exigindo uma habituação prolongada e à parte do contexto laboratorial. A redução de stress associado ao manuseamento também pode melhorar a fiabilidade dos resultados experimentais e portanto constitui um método eficaz de introduzir os 2Rs (de refinamento e redução) nas práticas de laboratório.
Que desafios vês à adopção mais generalizada destas técnicas para o manuseamento de animais de laboratório?
Penso que ha vários desafios. O desconhecimento sobre os efeitos mais generalizados destes métodos, tanto a nível fisiológico como comportamental, e a sua influência nos resultados experimentais são desafios para a da adopção destes métodos como padrão. Poderá haver situações em que usar uma técnica menos aversiva possa reduzir a possibilidade de detectar um efeito experimental ou mesmo ser contra-indicada. Por exemplo, em psicofarmacologia pretende-se usar modelos animais que demonstrem elevada ansiedade. É possível que minimizando o stress ambiental associado ao manuseamento possa haver um efeito atenuante, e portanto influenciar o efeito farmacológico de um ansiolítico. É necessário haver mais investigação sobre os efeitos de manuseamento prática variação de resultados experimentais de forma a encaminhar para uma prática generalizada destes métodos. Também o uso destes métodos poderá ter algumas limitações, como por exemplo, para o manuseamento de múltiplos animais por jaula em que poucos animais cabem de uma vez no túnel ou o uso destas técnicas em animais muito jovens em que a habituação ao manuseamento não é imediata. O próprio processo de implementação generalizada destes métodos também constitui um desafio, pois é necessário que organizações científicas e entidades reguladoras reconheçam a importância do manuseamento menos aversivo e comecem a implementar as técnicas na formação de investigadores e pessoal técnico.
Antes de desenvolveres este projecto no NC3Rs, em que outros trabalhos na área de bem-estar animal estiveste envolvida?
Durante o meu estágio de veterinária fiz dois projectos sobre o bem-estar de animais no matadouro. Num deles investiguei a incidência de lesões post mortem em frangos criados em regime extensivo, e a sua associação com acontecimentos que antecedem ao abate. No outro estudei a fiabilidade de determinados comportamentos manifestados por bovinos durante o atordoamento, como indicadores de um atordoamento eficaz. Após ter completado o curso, estive envolvida na submissão da candidatura de um projecto de investigação a FCT, sobre estratégias para aumentar o uso dos parques em regime extensivo na criação de frangos. Fiz também um projecto numa sociedade protectora de animais de companhia no Porto, em que estudei o bem-estar de gatos alojados em grupos, relativamente a alguns factores, como por exemplo o tempo de estadia e composição do grupo. Pouco antes de começar o meu doutoramento também realizei um projecto na universidade de British Columbia (Vancouver, Canada) em que investiguei aprendizagem do uso de free-stalls em novilhas leiteiras.
Não há em Portugal nenhuma instituição científica nem orçamento dedicado ao desenvolvimento e promoção dos 3Rs, ao contrário do que acontece noutros países europeus. O que é que, na tua opinião, faria falta para que fosse criado um centro para investigação nestas áreas no nosso país?
Julgo que em parte falta haver investimento financeiro de grandes empresas em Portugal. Alias, esta diferença e muito notável entre países com baixo ou elevado sucesso na implementação de programas de bem-estar animal. Também era necessário haver envolvimento ou colaboração com os cientistas mais conceituados da área a nível internacional, para aumentar as hipóteses de aprovação dos projectos de investigação pelas organizações cientificas portuguesas e internacionais.
Para finalizar, que projectos tens para o futuro, no curto e médio prazo?
Gostaria de continuar a trabalhar nesta área e talvez um dia fazer parte de um centro de investigação científica em Portugal, quem sabe!