"Sem pensamento, sem diálogo estruturado sobre o porquê das coisas, sem controvérsia, sem enigma, sem verdadeira experimentação, não há ciência nem educação científica."
- José Mariano Gago (1948-2015)
Palavras finais do discurso de abertura do primeiro fórum Ciência Viva
Faço pela primeira vez um off-topic neste blog, mas que considero essencial, uma vez que se hoje sou um investigador, se tenho um doutoramento (financiado por uma bolsa FCT) e mesmo se escrevo estas linhas como profissional nesta área, em muito o devo a José Mariano Gago.
O bem-estar animal não seria nunca em Portugal uma área prioritária, e foi exactamente por Mariano Gago se ter recusado a definir as tais famigeradas "áreas estratégicas" mas antes valorizado a qualidade das equipas e dos projectos, que tive esta e outras oportunidades para desenvolver trabalho académico neste domínio, trabalho que deu frutos e foi inclusive reconhecido internacionalmente.
Há, claramente, um país antes e depois de Mariano Gago, pois foi ele que pôs a ciência definitivamente no mapa - político e social - em Portugal, bem como a ciência nacional no mapa europeu e mundial. Esteve à frente da pasta da ciência e tecnologia (que antes nem existia) em quatro governos socialistas, e foi sua a visão que permitiu o "choque-cientifico" nacional, aquela que foi a decisão política mais consensual e com melhores resultados no país, tanto que nem mesmo o PSD ousara mudar, até à chegada de Nuno Crato.
Eminente cientista, tinha a convicção (que partilho) de que quanto maior a cultura científica de um povo, maior a sua capacidade de intervir de modo informado e participativo nas importantes decisões de um país. Mas não se ficou pela ideologia, e criou a Agência Ciência Viva, inovadora em toda a Europa, e ainda hoje um motor da promoção e democratização da ciência. Pois é isso mesmo que acontece quando o público e a ciência se aproximam: melhor cidadania e mais democracia. E já perdi a conta ao número de diferentes iniciativas no âmbito da Ciência Viva em que colaborei, para não falar nos muitos centros Ciência Viva que visitei, primeiro sozinho, e depois já com o meu filho.
Foi perfeito? Não. Há muito que o estatuto dos bolseiros de investigação precisa de ser mudado, e nada fez nesse nesse sentido. Quando deixou a pasta em 2011, já o valor das bolsas estava congelado há dez anos. Mais, foi responsável pelo modo (na minha opinião estapafúrdio) como o processo de Bolonha foi implementado em Portugal. E outros pecados houve, certamente. Afinal, era humano...
E, apesar de todas estas falhas foi, na minha opinião, o melhor ministro da nossa democracia. Se, por um lado, isto poderá dizer algo sobre a qualidade média dos governantes em Portugal, por outro não nos podemos esquecer da sua visão para Portugal a longo prazo, sem imediatismos, populismos e eleitoralismos; da sua dedicação e sentido de dever cívico; do modo como afincadamente trabalhou para fazer da Ciência e do Conhecimento em Portugal uma prioridade, e dos frutos que hoje colhemos (e que continuaremos a colher) da sua acção governativa.
Hoje junto-me a centenas (milhares, talvez) de cientistas que o homenagearão à porta dos seus institutos. Tal gesto é absolutamente inédito em Portugal e presumo que raro no mundo, mas absolutamente merecido.