Gostaria de ser cozido vivo? O dilema moral de um prato de caracóis.

Caracóis cozidos são uma iguaria muito apreciada em Portugal nesta altura do ano. Nesse sentido, o grupo activista Acҫão Directa lanҫou uma campanha em defesa dos caracóis, alertando para a dimensão moral do facto de estes moluscos serem cozidos vivos. Segundo a dita associaҫão “estes animais sentem e por tal sofrem nas circunstâncias em que são instrumentalizados apenas para satisfazer o palato de quem os procura como petisco”. A reacҫão das redes sociais – quase sempre ígnea, hiperbólica e intolerante – não se fez esperar, considerando a iniciativa para lá de ridícula e obrigando mesmo a associaҫão a reagir às críticas de que tem sido alvo.


O alerta lanҫado pela Acҫão Directa nada tem de ridículo. A evidência de estudos comportamentais é inteiramente consistente com a ideia de que alguns invertebrados, principalmente crustáceos (como as lagostas) e moluscos (como caracóis), experienciam dor. No entanto, é de salentar que eu uso o verbo experienciar, em vez do verbo sentir, porque a diferenҫa entre os dois não é apenas semântica. Na verdade, não basta dizer que um animal experimenta dor para que essa dor seja relevante em termos morais. Para que a dor conte moralmente o animal deve senti-la como experiência subjetiva aversiva (i.e. sofrimento), algo que não é de todo evidente no caso do caracol. Para além disso, a questão do sofrimento deve ser analisada em perspectiva e não de forma isolada. Ao contrário do Nuno Franco, não me afirmo como ‘bem-estarista’. Penso que a vida é muito mais do que sentimentos hedonistas de dor e prazer. Valores como o a dimensão ambiental, a responsabilidade social ou a motivaҫão do agente moral (ou seu carácter) são porventura elementos tão ou mais importantes no juízo ético.

Noutras ocasiões já me afirmei como omnívoro e no meu menú constam também os caracóis (ou constavam, pois na Irlanda não os encontro). A helicicultura (i.e. cultivo de caracóis) é uma forma de produҫão animal extremamente eficiente, consumindo muito menos recursos naturais (e.g. terra arável, materias primas) do que aqueles necessários por outras formas de agropecuária industrial. Os caracóis consumidos em Portugal são na sua maioria provenientes de Marrocos. Considerando a sua proximidade (Marrocos esta mais perto de Portugal do que Franҫa, outro país produtor de escargots), o benefício social para as populaҫões locais e a possibilidade de substituir outras formas de consumo proteico – que provavelmente causam maiores problemas de bem-estar, de sustentabilidade ambiental e social – são todas razões de peso para não me rever na campanha da Acҫão Directa.

Além do mais, os caracóis são uma excelente fonte alternativa de proteína. Um prato de caracóis pode facilmente substituir um bife, com muitos outros benefícios nutricionais. Segundo a revista Visão, além do alto teor proteico (13 a 15%) e baixo teor lipídico (0,3 a 0,8%), os caracóis são ricos em ácidos gordos polinsaturados e sais minerais, sobretudo magnésio, cálcio, ferro, cobre e zinco. Quem sabe de caracóis sabe o difícil que é cozinhá-los bem. Para garantir sabor, salubridade e higiene é necessário preservar a frescura do produto e é por isso é que os caracóis devem ser cozinhados vivos. Não existem métodos eficazes de occisão de moluscos e o abate de caracóis apresenta desafios acrescidos em virtude do elevado número de animais envolvidos, das suas reduzidas dimensões, da sua anatomia e resiliência.

Apesar de simpatizar com os motivos desta campanha, ela não conta com o meu apoio, porque não procura soluҫões ou sequer um debate sobre o tema. A procura de alternativas ao uso de caracóis vivos (nomeadamente através de métodos eficazes de abate) parece-me muito mais construtiva do que uma campanha contra o seu consumo.
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