Um artigo de Peter Sandøe, filósofo e colaborador do Animalogos, traduzido por Anna Olsson e Nuno Franco.
Adaptado da capa do livro de Hal Herzog, "Some we love, some we hate, some we eat: Why It's So Hard to Think Straight About Animals" |
Desta forma, Sócrates nega que uma pessoa possa estar numa situação em que saiba qual a coisa certa a fazer, mas que por conveniência ou proveito próprio aja contra as suas próprias convicções. Essa pessoa estaria em conflito interior, mas segundo Sócrates a felicidade não é incompatível com uma vida em conflito consigo mesmo. Uma vez que ninguém por seu livre arbítrio iria escolher ser infeliz, será incompatível com os interesses bem informados de uma pessoa não agir de acordo com suas convicções. Portanto, uma aparentemente falta de força de vontade é, na realidade, uma expressão de ignorância.
Numa perspectiva contemporânea, o argumento de Sócrates parece ingénuo. Inspirados por pensadores como Schopenhauer e Freud, muitos já não vêem os seres humanos como indivíduos fundamentalmente racionais e unicamente guiados pelo seu ideal do que será mais correcto, devidamente fundamentado em conhecimento ideal. Pelo contrário, é amplamente entendido que os seres humanos são, em grande medida vítimas dos seus impulsos. Na melhor das circunstâncias, as pessoas poderão ser capazes de controlar esses impulsos de modo a agirem civilizadamente. Mas a sua força de vontade é fraca e não são precisas muitas tentações para as pessoas pararem de se preocupar com o que acham ser correcto e razoável.
Desde o final dos 1950s que uma linha de investigação em psicologia tem desenvolvido estudos que parecem apoiar parcialmente a perspectiva de Sócrates, mas de uma forma que dificilmente segue o espírito da mesma. Esta pesquisa tem como objectivo demonstrar que quando as pessoas fazem coisas que parecem ir contra a sua consciência, frequentemente redefinem o seu entendimento da realidade, evitando assim serem confrontadas com a discrepância entre ideal e realidade.
Os psicólogos responsáveis por estes estudos parecem concordar com Sócrates que para qualquer pessoa é intolerável estar em conflito interior. Assim, precisamos contornar o que é entendido como "dissonância cognitiva", algo que ocorre, por exemplo, quando valores e acções não correspondem. Contrariamente à opinião de Sócrates, de acordo com esta teoria da psicologia, muitas pessoas mantêm a harmonia adaptando os seus valores às suas acções, ao invés de adaptarem as suas acções aos seus valores, como Sócrates teria argumentado.
Nos últimos anos, a nossa relação com os animais tem sido objecto de atenção nesta linha de investigação. Aqui, os psicólogos têm definido um problema a que denominam de "o paradoxo da carne". Este é, por exemplo, expresso no número de pessoas que, por um lado, gostam de animais – e são por exemplo capazes de manter um gato pelo qual farão tudo ao seu alcance para cuidar – mas que, por outro lado, comem carne de animais que habitualmente vivem em condições que não achariam aceitáveis para um gato ou um cão.
Uma série de experiências psicológicas têm sido realizadas, procurando entender como é que comedores de carne lidam com este paradoxo. Numa dessas experiências, levadas a cabo por um grupo de investigadores australianos, cerca de 100 participantes foram divididos em dois grupos. A metade destes foi oferecido um produto à base de carne seca e aos restantes castanhas de caju torradas.
Aos participantes foi transmitido que a experiência tinha a ver com as preferências dos consumidores de produtos alimentares e foi-lhes assim pedido que preenchessem um questionário sobre o que achavam do lanche que tinham comido. Mas foram ainda informados que deveriam preencher um segundo questionário que não tinha nada a ver com a experiência em questão. O primeiro questionário foi na realidade realizado com a intenção de distrair os participantes do estudo em questão, desenvolvido em torno do segundo questionário.
Neste segundo questionário os participantes foram sondados quanto à sua percepção e atitudes relativamente a um determinado número de espécies animais, uma das quais a vaca. O resultado foi que os que haviam comido carne expressaram em maior medida a opinião de que as vacas merecem consideração moral, em comparação com aqueles que tinham comido castanha de caju. A capacidade da vaca para sofrer também foi em maior medida avaliada como sendo menor pelos participantes que tinham comido carne, em comparação com o outro grupo.
O resultado desta experiência, em linha com muitos outros estudos semelhantes, é que comer carne faz as pessoas inconscientemente mudarem sua visão do estatuto moral dos animais que comem, bem como da sua capacidade mental. O velho ditado de que somos o que comemos, aparentemente, chega também à esfera moral.
Se alguém quiser mudar hábitos de consumo de modo a que estes sejam melhores para os animais, ao que parece terá de lidar com poderosas tendências psicológicas. Não parece ser suficiente apelar ao facto que vacas, porcos e galinhas são tão animais como os cães e os gatos, ou tentar divulgar resultados da investigação sobre a capacidade mental dos animais. Estas iniciativas podem em grande medida ser vistas como ameaças das quais muitos se tentarão proteger através deste tipo de mecanismos psicológicos.
Em vez de apelar à consciência e racionalidade, poderá ser melhor apelar directamente a características alimentares. Se o bem-estar animal pode ser atingido através de produtos com um gosto melhor ou esteticamente mais agradáveis do que os produtos convencionais, talvez esta seja uma melhor abordagem. Isto é corroborado pelo grande sucesso de produtos orgânicos, que em mais de que uma forma garantem que o consumidor não acba com um amargo na boca.